Friday, October 19, 2012

"para adultos de pé e olhos abertos"


"Se há pessoas que olham para o que construí como difícil de entender é porque não compreendem a complexidade da vida, e isso não é culpa minha, é defeito delas. (...) O medo de saber apavora-nos. A ideia de tomar consciência arrepia-nos. Recusamos a possibilidade de viver no interior de nós mesmos. O facto de um livro contar uma história apazigua o nosso lado infantil. Não serve de nada salvo para nos tranquilizar. E continuamos por fora do que nos inquieta, nos assusta, nos alerta (...) Fiz livros para adultos de pé e olhos abertos. (...) Não é possível falar racionalmente do que não é racional, explicar o que se passa antes das palavras, desarticular o que é feito de uma peça apenas e a vida do autor só para ele mesmo e, na melhor das hipóteses, para mais meia dúzia de criaturas, poderá ter interesse. A arte, mistério impenetrável, não cabe na razão lógica e qualquer tentativa de a desmontar será sempre inútil. (...) Permanecerá para sempre secreta e insolúvel. Pode bordar-se em torno mas fora da muralha, nada tem que ver com a inteligência, a razão, o raciocínio dedutivo: existe em si mesma, por si mesma e para si mesma, apenas permeável ao inconsciente e, no entanto, ao tocar-nos no inconsciente muda a nossa percepção do mundo e de nós mesmos em consequência de um mecanismo que nos escapa. (...)
Pelo teu amor dói-me o ar
o coração e o chapéu.
Isto, aparentemente, não significa nada e, no entanto, faz-nos vibrar como cordas."

António Lobo Antunes, Adeus, Visão nº 1024, 18/10/2012


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